Meus textos

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Recuperação


“Famigerada, terrível, odiosa”. É assim que tratamos uma ladeira de morte de uns oitocentos metros e que ironicamente termina em frente à Faculdade de Biologia da USP. Ela é o batismo de quem quer se considerar um corredor. Aqueles que conseguem domá-la não temem qualquer outro percurso. Encontram-se devidamente preparados para as competições. Ressalva a tempo: nessas competições o único adversário é você mesmo e os quilômetros que separam a faixa da largada do anúncio da chegada. Os corredores amadores não nutrem a mínima pretensão de chegar em primeiro lugar, basta completar a prova.
Recordo-me do dia em que derrotei a famigerada pela primeira vez. Cheguei ao topo com o coração irado e reclamando. O ar, subitamente rarefeito, não chegava aos músculos, minhas pernas se embriagaram. Mas depois, treinando para uma maratona, acabei tirando o aguilhão da odiosa. Não a respeito como antigamente! Já consegui subí-la por sete vezes consecutivas. Corro e encaro meus desafios com o mesmo vigor daqueles tempos que ainda não celebrara meus quarenta anos. Mas, algo vem acontecendo comigo e com o meu corpo, nesta véspera de celebrar os cinquenta. Para me recuperar do esforço de correr, preciso de períodos cada vez mais longos de descanso.
Constato que isso não me acontece só em corridas. Antigamente terminava de pregar um sermão, saía para jantar com amigos, voltava para casa de madrugada e já na segunda-feira cedinho encarava qualquer nova aventura. Agora sinto dificuldade para me levantar da cama. Meu corpo, minha mente, meus sentimentos me amarram aos lençóis e não me deixam funcionar bem até que o processo de recuperação aconteça completamente.
Há outros exemplos até mais constrangedores: do sexo às refeições. A idade me cobra intervalos mais longos para me recondicionar e me declarar apto novamente. A princípio nem notei, agora bem apercebido, entristeci. Porque à medida que envelhecemos, precisamos desses hiatos longos? Há alguma verdade escondida além do óbvio? Não me satisfaço com a resposta de que o maquinário se desgastou ou está ultrapassado.
Já sei! Na velhice precisamos de maiores intervalos para degustar a vida demoradamente. É uma forma da natureza nos obrigar a não pular apressadamente para uma nova experiência, sem antes saboreá-la com calma. Na juventude, acabávamos de viver um romance, experimentar o sexo, saborear uma torta, ver uma pintura, ouvir uma música, declamar um poema, rir de uma piada, ouvir um sermão e já estávamos ávidos para mais. Agora não! Nem queremos que venha logo a próxima experiência. A vida nos obriga a ficar com o seu gosto na boca por mais tempo. Eu chamava esses hiatos antigamente de recuperação, hoje eu chamo de felicidade.
Se já não saio de minhas dores com facilidade, se elas grudam em mim, me obrigam a sofrê-las, tatuá-las em minhas entranhas, o mesmo acontece com as minhas alegrias. Já não me despeço delas com rapidez; sei o quanto custam.
Envelhecer não é tão ruim, como eu imaginava.
Soli Deo Gloriaoli Deo Gloria

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

"Meu filho não merece nada"

 



A crença de que a felicidade é um
direito tem tornado despreparada
a geração mais preparada.

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.


Por Eliane Brum*
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*Eliane Brum escreve às segundas-feiras na Revista Época

terça-feira, 19 de julho de 2011

fotos página: 05


Dormindo na rodoviária esperando os manifestantes liberarem a estrada na volta para Lima-Perú


Traduzindo sermão do Pr. Clau em Villa Salvador  Lima-Perú



Primeira vez que peguei Angelin no colo.



Tomando emoliente com: Lu, Pablo, Clau.   Saudades....



Dando aula para os seminaristas em São Paulo - Brasil



Algum lugar de São Paulo



Parque das Lendas Lima- Perú


Barra do Quaraí, fronteira entre Brasil e Uruguay



Museu de Callao o mais bonito do mundo segundo o Pr. Paulo

fotos página: 04

Amigos na A.G

Casamento Karin e Emanuel


Pri em Arica-Chile

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Feliz dia do Pastor

Esses dias um amigo me fez lembrar um frase muito usada no ciclo pastoral:
 E mais fácil gerar filhos do que ressuscitar mortos.
 Claro que esse pensamento se aplica a pessoas desviadas, aquelas que os pastores gastam semanas e meses visitando para ajudar na reabilitação congregacional. E quando voltam pra igreja sempre estão no epicentro dos problemas.
E notável que a igreja gasta muito tempo e força na tentativa de recuperar aqueles que se afastaram. Eventos feitos exclusivamente para essa confraria de pessoas.
Pergunto-me se não esta na hora de começarmos gerar novos filhos e se esquecer dos mortos.

Marcus A. Grovo

sexta-feira, 8 de julho de 2011

fotos página: 03


Eu, Pri, Lu e Pr. Paulo.

Parque das leyendas

Lima- Perú


 Mi, Pri e Eu

Mira flores - Perú

fotos página: 02


Duda fazendo chuquinhas em meu vasto cabelo

São Paulo- Brasil



Nossa casa

Lima - Perú




Oceano pacífico - Perú

fotos página: 01


Minha sobrinha Vivi manhosa igual o pai.

Mato-grosso Brasil




Eu novinho.

Rio Grande do Sul - Brasil





Eu e o meu primo Alison.... Leandro ao fundo rs

São Paulo-Brasil

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A Idade de Ser Feliz


Existe somente uma idade para a gente ser feliz,
somente uma época na vida de cada pessoa
em que é possível sonhar e fazer planos
e ter energia bastante para realizá-las
a despeito de todas as dificuldades e obstáculos.

Uma só idade para a gente se encantar com a vida e viver apaixonadamente
e desfrutar tudo com toda intensidade
sem medo, nem culpa de sentir prazer.

Fase dourada em que a gente pode criar
e recriar a vida,
a nossa própria imagem e semelhança
e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores
e entregar-se a todos os amores
sem preconceito nem pudor.

Tempo de entusiasmo e coragem
em que todo o desafio é mais um convite à luta
que a gente enfrenta com toda disposição
de tentar algo NOVO, de NOVO e de NOVO,
e quantas vezes for preciso.

Essa idade tão fugaz na vida da gente
chama-se PRESENTE
e tem a duração do instante que passa

Somos uma grande farsa

Alex Carrari

“Hipócritas! Bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens” Mt 15.7-9
Salvo alguns que não se dobraram a baal, somos todos uns canalhas. Eu, você, nós todos somos uma grande farsa, a maior de todas as farsas. E sabe por quê?
Organizamos nossas vidas de modo que tenhamos o mínimo dispêndio com a garantia do maior e melhor retorno. Fingimos que somos de outra estirpe, a dos filhos prediletos. Como filhos prediletos, queremos ser restituídos, queremos de volta o que é nosso. Rejeitamos todo mal, declaramos a nossa vitória, quebramos todas as correntes, exigimos nossa benção, sacudimos o inferno, não por sermos de Espírito libertário, muito menos altruístas; reagimos às ameaças negativas do “no mundo tereis aflições”como bons invólucros do espírito do capitalismo, do que é nosso e ninguém tasca, sendo essa nossa ética gospelizante. Dos nossos guetos, claustros protegidos por hostes angélicas imaginárias, estabelecemo-nos nas estatísticas do emergente mercado com produtos alinhados com o exigente gosto do consumidor evangélico. “Enfim uma linha de produtos com a nossa cara” declara a perua de Jesus.
A cruz da vergonha, símbolo de assombro, pedestal do maldito, foi estampada com alegres cores e as vendas alavancaram. O peixinho antes solitário na rabeira dos carros agora endossa Filipenses 4.13, assim, não se dá satisfação para o significado de um ao passo que ninguém se atenta para o versículo anterior do outro. Podemos então astutamente declarar “tudo posso naquele que me fortalece” depurando nossa ganância, afinando o mau senso de que temos o rei na barriga. Na cara dura agradecemos a Deus por nossos sonhos de consumo se realizarem, mesmo que uma pequena – ou grande dependendo da gula do fiel – barganha tenha sido requerida para a liberação das bênçãos. A campanha dos vinte e um dias de Daniel não costuma falhar com aqueles que são, digamos mais liberais nas contribuições. Jesus é nosso chapa, e Deus dá honra a quem tem honra é o ditado e pretexto.
Comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem é demais para nosso paladar requintado, queremos os manjares de Nabucodonozor, basta obedecer o Cristo em outra instância – que não a de tomar a cruz diária – e comeremos do melhor desta terra. A promessa concreta que é “Cristo em nós esperança da glória”, que permeia a história do Antigo e Novo Testamento, foi dissolvida, perdeu seu caráter e virou qualquer coisa, quem tiver a mais criativa imaginação que molde e determine a sua. Deus é Deus de promessa “mer mão” vocifera em saltos histéricos o pastor que se gabou de comprar um jato pela “pequena bagatela” de
doze milhões de reais com o dinheiro sabe de quem?

O mandamento era ide e fazei discípulos, e o que fizemos? Cínico proselitismo. E sabe por quê? Porque somos uma farsa e já percebemos isso, nossa casa caiu. Então arregimentamos novas “almas” para compor uma sofisticada logística do entretenimento em que o evangelho é servido via fast food, e a igreja para não ir a bancarrota por causa de sua insipidez importa fórmulas de crescimento, franquias norte-americanas compondo o pacote camisetas, canecas, bonés, manuais de auto-ajuda e sermões previamente arranjados. Somos uma farsa denunciada por nossos projetos megalomaníacos, mega-templos – com loja de conveniência e chafariz –, marcha para Jesus – ufanismo quantitativo –, assistência social – desencargo de consciência e escape do sentimento de culpa por sermos avarentos e egoístas –, descaso com missões – o que importa são as almas –, discipulado – catecismo de cacoetes, novas manias e antigas neuroses.
Criamos uma bem guardada resistência às histórias de sofrimento alheio quando o assunto é padecer pela causa do Cristo. A emoção corre solta durante o testemunho do missionário, e dura até no máximo a primeira oração da próxima reunião, quando o mundo volta a girar em torno do centro da terra, o umbigo das nossas panças bem forradas. Histórias como da pequena Nina de dois anos que vive com seus pais missionários embrenhada nas matas entre os ribeirinhos do amazonas, que está vomitando a dias com suspeita de algum parasita ter tomado sua barriga, é exemplo sabe pra que? Sabe qual a grande lição que guardamos das crianças ribeirinhas que adquirem doenças desconhecidas por comerem peixes contaminados por não terem outra opção? Que Deus é bondoso conosco e nos garante comida limpa e mesa farta – afinal o justo não mendiga o pão. Que esse é um forte indício para acolhermos nossos bens de consumo e agradecer a Deus por nossos filhos estarem a salvo dos perigos da pobreza.
No caso de sermos acusados por nossa própria consciência – o juiz que Deus nos colocou no íntimo – de que algo nessa trama não se harmoniza com as palavras do Nazareno, somos confortados com saídas bem satisfatórias, tipo: Deus tem um propósito nisso, ou, foram predestinados para esse fim, ou ainda, não chegou o tempo de Deus na vida desses coitados.
O drama de Nina é um dentre tantos dramas contados por aí sobre os que pagam um alto preço por proclamar a rude cruz com todas as suas implicações, que deveria deixar-nos envergonhados por habitarmos em belas e espaçosas casas, por termos comida boa, roupa nova, plano de saúde, igreja com banco confortável, projetos, sonhos, canecas, bonés e camisas floridas estilo Rick Warren.

Deveríamos nos arrepender por comermos contra-filé e tomarmos Coca diet enquanto nas eiras do norte e nordeste comunidades inteiras comem bife de cacto não sem antes beber a água. Nossa cara deveria enrubescer por um missionário ter seu sustento – que é ínfimo, migalhas que caem da mesa de seus donos – ser desconsiderado como prioridade porque outros projetos institucionais são de maior importância e urgência. Por projetos institucionais entenda a construção do mega-templo, o aumento do salário de parlamentar do pastor, o gasto com propaganda midiática da denominação, a manutenção do conforto dominical do contribuinte-consumidor, importação de produtos da franquia, etc.
Julgamos ser assunto de primeira ordem a conservação do excedente dos nossos luxos e prazeres inúteis. Morreremos pela boca, já que com a boca distorcemos o discurso do Cristo para satisfazer nossos prazeres e deleites quando pedimos o que não se deve pedir. Pedimos mal e nos prostramos sobre a proposta do tentador que habita em nós. Queremos tudo e tudo nos será dado se prostrados adorarmos o lado enegrecido da nossa alma. Desconfiados de que amanhã o maná não cairá, estocamos hoje o da semana e quando percebemos que a sobra azedou fazemos caridade com a comida que já não presta. Não há em nosso discurso e prática, equivalente lingüístico nem espaço físico para o nós, tampouco para o nosso. É o meu milagre, a minha vitória, a minha benção, eu, meu, eu, meu, meu, minha, meu, minha... É só crer e não duvidar que hoje o meu milagre vai chegar.
Do conselho de Paulo “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão também cada qual o que é dos outros” só consideramos o que do outro eu também almejo, seus bens de consumo. Com a cara lavada somos gratos a Deus por nosso padrão de vida estar se elevando ao passo que indiretamente afirmamos que Deus faz acepção de pessoas, já que pra mim aqui no sudeste é prometido uma terra que mana leite e mel, enquanto no norte e nordeste outros comem cacto não sem antes beber a água.
Somos a maior farsa de todas, pois, corrompemos a maior história de todas. Por conveniência dizemos coisas que o Cristo não disse e omitimos outras que ele disse. Caso nossa estabilidade e tranqüilidade – que com muito custo conquistamos domingo a pós domingo, mensagem após mensagem, louvor após louvor, dízimo após dízimo – seja de alguma forma ameaçada sacamos logo de uma fala de Jesus e entoamos um mântra para amarrar todo mal. Assim proclamamos, por uma questão muito mais de fazer novos prosélitos e mostrar que detemos o monopólio da verdade do que propriamente amor ao outro, um Jesus que nunca conhecemos.
Diógenes circula com uma lanterna no meio dos crentes em pleno meio dia procurando algum sábio sem que o possa achar.
Os sábios não estão entre nós, estão existencialmente no exílio, onde até as pedras estão clamando. Elias não fazia a menor idéia, mas sete mil ainda não tinham se dobrado, pois estes estavam fora do grande eixo, não possuíam nome nem imagem. Deus não esta no templo. Deus clama no deserto e o batista lhe empresta a voz.

O sal se tornou insípido. A luz está colocada de baixo do alqueire. A casa foi construída na areia. O Cristo está à porta, mas não lhe abrimos passagem. E juramos de pé junto com base nas estatísticas que estamos certos.

herdeirosdodeserto.blogspot.com/

Enquanto aguardo a volta de Cristo

Ricardo Gondim

Estou em processo. Dinamito alguns pressupostos e, sem pressa, procuro novos alicerces para minha elaboração teológica. Identifico uma mudança - que vem acontecendo sem que eu mesmo perceba: largo a sistematização do mistério. Há alguns anos escrevi um texto em que confessava cansaço. Na verdade eu não estava fadigado. Era meu grito. Um profundo anseio por mudança. Intuitivamente, percebia que os fios que conectavam minhas várias lógicas religiosas estavam soltos e que perdia energias existenciais, espirituais e emocionais.
Li diversos autores e criei coragem de fazer algumas perguntas difíceis. Obedeci o conselho de Jesus, calculei os riscos, e resolvi tomar o caminho menos trilhado. Agora confesso: estou em transformação. Procuro fazer teologia no ritmo da poesia. Esforço-me para garimpar esperança na verdade poética. Noto quanta força a poesia tem para salvar o mundo. Já se perguntou se era possível sentir o poema “fervilhando em larvas numa terra prenhe de cadáveres”. Eu respondo que sim! Insisto na caminhada porque entendo a Bíblia como uma linda obra poética; sem pretensão de codificar o divino, as Escrituras falam nas frestas da metáfora, do mítico, da parábola, do poema.
Acredito que somente a beleza pode enfrentar a feiura. Deus ainda fala e suas palavras são como água fresca na caatinga. Passarão céus e terra, mas o recado divino continua boas notícias em um mundo esfacelado. No fiat primordial, o universo explodiu prenhe, mas de formosura. É preciso não perder o propósito da criação de fazer a humanidade aquarela, diapasão das sinfonias, chave misteriosa dos enigmas existenciais e eureca sagrada do Espírito. Temos o potencial de sermos espetaculares e não podemos deixar tanta riqueza se perder.
Sim, o mal existe. A perversidade se multiplica. Não faltam ímpios em busca de perpetuar estruturas demoníacas. Mas resistem os artistas, estivadores, lavadeiras de beira de rio, médicos, violinistas, filósofas, sacerdotes, cantores de churrascaria, psicólogas. Nem sempre prevalece a sanha dos traficantes, dos mercadores internacionais de fuzis, dos cafetões ou dos exploradores da mão de obra infantil. Pego na mão dessa gente e não desespero, sei que podemos fazer sinalizar lampejos do Amanhã tão aguardado, daquele porvir que ainda não alvoreceu.
Insisto em fazer teologia porque acredito que o caminho do perverso não prevalecerá. Os grilhões do vício não resistirão ao dobrar dos sinos do Reino final. Do alto da torre da Cidade Celestial se proclamará o triunfo da luz sobre as trevas. Juntos celebraremos o brilho do sol da justiça. A bondade é fermento, a mansidão, ácido e a integridade, aríete. Um dia, ruirá por terra o castelo da maldade.
Preservo meu fôlego. Preciso me manter dócil. Vivo em um mundo que banalizou a morte. Necessito continuar a acreditar no perfume do amor, na densidade da mansidão e na energia da solidariedade. Quando acossado pela decepção, procuro trazer à memória o soldado romano que se fez servo de um escravo, a mãe cananeia ajoelhada pela filha aflita, os dois cegos peitando a sorte e o ladrão que prenunciou o paraíso no seu derradeiro instante.
Faço teologia sem esquecer de reverenciar os sete mil profetas que permanecem de pé. Rodeado de gente que não renegou o martírio, procuro não fugir ao meu. Inspirado no meu Salvador, percebo a força embutida na fragilidade. Sei que o Cordeiro é digno de abrir o rolo da História e que, na sua volta, o acolheremos. Faço teologia e aguardo o grande dia quando terra e céu se tornarão uma só realidade.

Precisamos de uma nova Reforma Protestante?

 

Por Dom Robinson Cavalcanti, bispo anglicano da Diocese do Recife.

Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”, mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e relevante

Introdução
Falo essa noite a uma plateia de protestantes, e falo como protestante. Falo em um País onde as estatísticas referentes ao número de fiéis de igrejas que pretendem algum vínculo com o Protestantismo não para de crescer, Censo após Censo, quando começamos praticamente de zero, ao nos tornar uma nação independente em 1822. Um dos grandes debates entre sociólogos da religião e estatísticos é quando iremos parar de crescer, ou se iremos parar de crescer. O Protestantismo é um dado relevante não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.
Por sua vez, o Congresso Lausanne III, realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, em outubro do ano passado, reunindo clérigos e leigos da mais ampla diversidade denominacional, foi uma demonstração evidente de que o Cristianismo é uma religião que, finalmente, se tornou um fenômeno global, mas de que o Protestantismo é, em grande parte, o responsável para que o Evangelho esteja sendo pregado a quase todas as nações. O ímpeto missionário protestante não tem diminuído, mas se diversificado.
Dentro de seis anos, exatamente, em 31 de outubro de 2017, estaremos, em todo o mundo, comemorando os 500 anos da Reforma Protestante do Século XVI. 500 Anos, cinco séculos, meio milênio, é um bocado de tempo. Algumas organizações eclesiásticas e intereclesiásticas internacionais já estão elaborando uma vasta programação, de celebração, de avaliação e de projeção. Essa Semana Teológica Água da Vida, de fato, vive um momento de pioneirismo, como que dando o pontapé inicial. E o fazemos na Baía da Guanabara, onde, ainda no século XVI, aportaram os pioneiros huguenotes, onde foi celebrada a primeira Santa Ceia protestante nas Américas, e onde foi elaborado o primeiro documento doutrinário reformado nesse Novo Mundo, a Confissão de Fé Fluminense.
Tornei-me, pessoalmente, um protestante, por convicção e opção, três anos após a minha conversão, ao professar a minha fé em uma Igreja Luterana, no Culto alusivo à Reforma, como um dos momentos culminantes de uma jornada espiritual, que continua até hoje. Escrevi, certa vez, em um jornal secular de grande circulação, considerar o 31 de outubro de 1517 a data mais importante da Igreja depois do Dia de Pentecostes. E continuo considerando.
Movida por Deus, mas realizada por homens, nas palavras de Martinho Lutero, “simultaneamente justificados e pecadores” (‘simul justus et pecator’) a Reforma foi responsável por grandes feitos e por grandes erros. A nós, hoje, em um constante processo de atualização, nos cabe a honra de reproduzir os grandes feitos, e corrigir e não repetir os grandes erros, nessa Reforma que está permanentemente se reformando, não em seu conteúdo, mas, exatamente, em suas formas, seus métodos, suas abordagens, suas ênfases, suas contextualizações, suas linguagens, suas polêmicas e suas apologéticas.
Repudio, com o máximo de veemência, os que a acham ultrapassada, vencida, uma página da História que está a ter as suas páginas viradas para sempre. Lamento aqueles – inclusive em nosso País – que dela passam a se envergonhar e a negar, quando, muitos desses, um dia vibraram com o seu legado e se orgulharam da sua identidade.
Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”, mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e relevante.
I – Cenário Passado
A Igreja, como Povo da Nova e Eterna Aliança, Novo Israel, novo Povo de Deus de todos os povos e para todos os povos, foi criada no coração do Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, como portadora das Boas Novas e sinal, primícia e vanguarda da Nova Humanidade, tendo sua inauguração no Dia de Pentecostes sob o poder do Espírito Santo, e tem estado presente de forma ininterrupta na História por dois mil anos, e assim estará, com Ele presente, até a consumação dos séculos.
Portanto, a História da Igreja não começa no Século XVI, mas no século I. Não começa com as 95 Teses de Lutero, mas com o discurso de Pedro. Não começa em Wittemberg, mas em Jerusalém. E, muito antes do Imperador Constantino, no quarto século, a Igreja já tinha se espalhado por todo o mundo civilizado de então; já tinha definido o Cânon do Novo Testamento e ratificado o Cânon judaico do Antigo Testamento; já tinha definido o conteúdo das doutrinas básicas emanadas dessas Escrituras: a Santíssima Trindade, as duas naturezas, o nascimento virginal, a morte vicária, a ressurreição, a natureza da Igreja, o Retorno do Senhor e o Juízo Final, o Novo Céu e a Nova Terra; já tinha definido os Sacramentos do Batismo e da Eucaristia; já tinha estabelecido ministérios de bispos, presbíteros e diáconos; já tinha estabelecido um padrão do governo e deliberação nos Concílios. E, tudo isso, sob a fórmula “pareceu-nos bem ao Espírito Santo e a nós”.
As bases fundamentais da Igreja nada têm a ver com Constantino, mas foram estabelecidas antes dele, nesse legado pensado, ensinado e transmitido pelos Apóstolos, pelos Pais Apostólicos e pelos Pais da Igreja. E era assim que os Reformadores Protestantes acreditavam. Eles nunca pretenderam criar uma nova igreja, fundar uma nova igreja, mas reformar a Igreja de sempre, Una, Santa, Católica e Apostólica. Eles repudiavam o romanismo, não o catolicismo, a fé universal histórica. Eles não traziam nada de novo senão a reafirmação do antigo e do eterno. Os Reformadores olhavam para o Oriente, onde estavam as Igrejas Bizantinas, as Igrejas Pré-Calcedônias (ou Jacobitas), as Igrejas Assírias (ou Nestorianas) e as Igrejas Uniatas (autônomas, mas vinculadas a Roma), e olhavam para o Ocidente, para a Igreja Romana ou Latina, e lamentavam e repudiavam os seus “erros, desvios e superstições” acumulados ao longo dos séculos, pretendendo questioná-los e expurgá-los, mas, unanimemente as consideravam como “ramos autênticos da única Igreja de Cristo”. E não era outra a sua visão em relação às manifestações proto-reformadas, como os valdenses e os hussitas ou moravianos.
Resgatar hoje a Reforma Protestante é resgatar essa visão dos Reformadores sobre o que acontecera antes deles, e, em decorrência, é repudiar, repito, repudiar, como uma terrível heresia, que nos trouxe danos incomensuráveis, a teoria que afirma uma suposta “apostasia geral da Igreja”, como se o Espírito Santo tivesse se ausentado da terra entre a morte de João e o nascimento de Lutero. Calvino, Lutero, Cranmer – todos eles – jamais pensaram assim, e condenariam quem pensasse assim, mas assumiam o passado e afirmavam a presença ininterrupta do Espírito Santo. Todos eles se referiam aos Concílios e aos Pais da Igreja. As Confissões de Fé da Reforma, por sua vez, reafirmam todos os artigos do Credo dos Apóstolos e do Credo Niceno, ampliando e aprofundando alguns temas, especialmente a autoridade das Sagradas Escrituras, a centralidade do sacrifício de Cristo e a salvação pela Graça mediante a Fé.
Uma questão central é: no que nos distanciamos hoje dos Reformadores?
Em primeiro lugar desse olhar positivo sobre todo o passado, desse assumir todo o passado, desse assumir toda a História, o que nos faz continuar críticos dos “desvios, erros e superstições”, mas que nos deveria fazer, também, respeitosos e abertos a aprender com as antigas Igrejas não-reformadas, e a dizer que, nos quinze séculos anteriores à Reforma, a cada domingo que se celebrava a Ressurreição e se recitava os Credos, ali estava – com todas as suas limitações – a Igreja de Cristo e não a apostasia do anti-cristo. Os embates travados nesse continente com a Igreja Romana, e os longos períodos de perseguição e discriminação, tornou a comunidade protestante mais vulnerável a aderir à heresia da “apostasia geral da Igreja”, e hoje, afirmando as nossas convicções protestantes, repudiamos essa heresia e reafirmamos o pensamento dos nossos antepassados na fé.
Em segundo lugar quando substituímos a autoridade das Sagradas Escrituras pelo racionalismo, de um lado, ou pelas revelações particulares e pelas experiências, do outro lado. Sola Scriptura, é uma Bíblia crida, aberta e exposta, como Palavra de Deus, nada ensinando ou requerendo que seja crido que por ela não se possa provar, quando substituímos a Sola Gratia pela Lei e pelas Obras, nas exigências legalistas e moralistas dos usos e costumes, quando substituímos a Sola Fide como dom de Deus que recebe a Graça, por um “pensamento positivo” que impõe ao céu a sua saúde e a sua prosperidade.
Começamos a Reforma com seis ramos do Cristianismo e a terminamos com uma dúzia apenas, pois o denominacionalismo não havia ainda surgido, e nem o termo “denominação” era sequer conhecido ou usado, porque, nem está na Bíblia, nem está nas Confissões de Fé Reformadas; nem está nos escritos dos Reformadores, porque eles repudiavam como pecados contra o Espírito Santo, tanto as heresias, que atentam contra a verdade, quanto os cismas, que atentam contra a unidade.
A Bíblia foi traduzida para um número cada vez maior de idiomas, escolas, universidades, hospitais foram espaços concretos do amor de Cristo às nações, o analfabetismo foi reduzido, vidas foram transformadas, culturas foram impactadas, o trabalho foi valorizado, a família afirmada, bem como a dignidade de toda a pessoa humana, em um vigoroso empreendimento missionário que, apesar dos seus inúmeros equívocos, teve uma inegável dimensão civilizatória. A Reforma Protestante, em seu conjunto, tornou o mundo melhor.
Expansão missionária que, por meio de missionários estrangeiros e pioneiros nacionais chegou até ao Brasil, sob fortes restrições legais e discriminações sociais, que varou os sertões ao lombo de burro, levando luzes onde havia escuridão da alma, e que nós hoje somente estamos aqui na esteira do seu ministério sacrificial. E, nessa noite, é nosso dever expressar a nossa gratidão e honrar a sua memória.
A Reforma deixou de ser algo longínquo, na Europa, ou na América do Norte, para ser algo vivo e atual no Brasil. Graças a Deus, por isso!
II – Cenário Atual
O avanço protestante foi originalmente obstaculado no Leste e no Sul da Europa, mas se desenvolveu no Centro e no Norte daquele continente, inclusive como religião oficial. Essa vinculação com o Estado não foi benéfica, e, rapidamente, deu lugar a uma imensa maioria de membros nominais e uma minoria de comprometidos, embora tenha tido um papel de plasmar marcas importantes da cultura e das instituições. Posteriormente, o avanço da Teologia Liberal – universalista quanto à salvação – acelerou o esvaziamento dos templos. Hoje, com a ideologia Secularista e a imigração de membros de outras religiões, particularmente do Islã, já se fala de uma Europa pós-cristã, onde, o que é mais grave, o Cristianismo vem sendo discriminado e perseguido pelo Estado e pela Sociedade secularizadas.
Quadro semelhante vai se dando também no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, e, em menor velocidade, mas não menos evidente, nos Estados Unidos da América. Philip Jenkins, essa sua obra agora clássica, A Próxima Cristandade, nos fala de um deslocamento, mais uma vez, do Cristianismo, do Norte e do Oeste para o Sul e o Leste do globo, notadamente para a África Sub-Saariana, para a América Latina e para algumas áreas da Ásia e da Oceania.
E aí vamos detectar alguns problemas internos enfrentados pelo Protestantismo, nas suas origens, com rebatimentos atuais.
O primeiro foi a sua preocupação com a Soteriologia à custa da Eclesiologia, resultando em uma débil doutrina sobre a Igreja, a partir de uma ruptura com o modelo histórico episcopal, e a criação do modelo presbiteriano e do modelo congregacional. A autoridade da Bíblia foi afirmada, mas não se elaborou instituições sólidas, que garantissem a manutenção desse princípio, fortemente atacado de fora pelo Racionalismo e de dentro do Liberalismo.
O segundo foi a distorção quanto ao princípio do “livre exame”, entendido originalmente como livre acesso, por uma visão posterior de uma “livre interpretação”, dentro do individualismo burguês decorrente do modo de produção capitalista e da urbanização, resultando em um caos doutrinário interminável.
O terceiro, a partir dos Estados Unidos nos últimos dois séculos, foi o surgimento do conceito de “denominação” e o fenômeno sócio-eclesiástico do “denominacionalismo”, com uma fragmentação institucional sem fim, e a eliminação do pecado do cisma.
Adicione-se as controvérsias polarizantes das primeiras décadas do século passado, outra vez tendo como epicentro os Estados Unidos, tais como: Liberalismo vs. Fundamentalismo; Evangelho Social vs. Evangelho Individual; Evolucionismo vs. Criacionismo, a atitude de apoio, indiferença ou oposição dos protestantes a Hitler e ao Nazismo, ao Racismo do Sul dos Estados Unidos, ao apartheid da África do Sul, a guerra civil de Ruanda, a um ou outro lado da ideologias em choque na chamada “Guerra Fria”, ou às ditaduras do Terceiro Mundo, inclusive da América Latina, além da falta de sensibilidade cultural de empreendimentos missionários, e teremos uma lista de aspectos negativos e danosos.
Os principais movimentos surgidos no interior do Protestantismo na primeira metade do século passado foram, sem dúvida, o Movimento Ecumênico, com uma necessária bandeira da unidade, mas que, depois, se perderia no caminho, sequestrado por uma elite teologicamente liberal; e o Movimento Pentecostal, que se, por um lado, teve um aspecto altamente positivo na atualização e na dinamização protestante, por outro lado foi negativamente marcado pelo sectarismo, pela alienação política e pelo antiintelectualismo. No século XXI o Movimento Pentecostal tem sido igualmente afetado por um doloroso processo de fragmentação, menos por questões doutrinárias do que por conflitos de personalidades e a prática de nepotismo.
Novas correntes, como a Teologia da Batalha Espiritual e a Teologia da Prosperidade apenas concorreram para esgarçar o já débil tecido unificador da comunidade protestante.
O velho Liberalismo Moderno Racionalista tem dado lugar, mais recentemente, ao Liberalismo Pós-Moderno Revisionista, no lugar da verdade pela razão, múltiplas verdades ou nenhuma verdade, o que incluiu um relativismo moral. Em várias tendências do protestantismo atual o passado é atacado e negado em seu valor, inclusive o conteúdo doutrinário, e tanto os racionalistas liberais, quanto conservadores valorizadores das revelações privadas causam imenso dano ao princípio reformado da Sola Scriptura.
Sem dúvida que a expressão mais dinâmica do Protestantismo, nos últimos dois séculos, tem sido o Evangelicalismo, com sua ênfase na Bíblia, na cruz, na conversão, na santificação e nas missões. Mas, como se pode claramente perceber no recente Congresso Lausanne III, na cidade do Cabo, África do Sul, a Igreja está se espalhando rapidamente por todo o mundo, e lideranças nacionais estão sendo treinadas, mas o controle financeiro, político e ideológico dessa corrente majoritária ainda está fortemente nas mãos das organizações sediadas nos espaço euro-ocidental e na cultura anglo-saxã.
Último em citação, mas não em importância, tem sido o avassalador fenômeno do chamado neo-pentecostalismo, também conhecido como iso ou pseudo-pentecostalismo, como seitas para-protestantes, pretendendo fazer parte dessa expressão do Cristianismo, mas sem com ele manter vínculos de qualquer natureza, seja histórico, seja teológico, seja doutrinário, trazendo danos à identidade e à imagem do Protestantismo.
Algo que deve ser ressaltado é que o Protestantismo Brasileiro, pela maior parte da sua história, conseguiu se manter ao largo de alguns fenômenos que atingiam negativamente os seus irmãos de outros continentes, chegando inclusive a ensaiar um nativismo e uma inculturação, uma caminhada autóctone, que hoje são apenas “gratas memórias”, porque também fomos atingidos pela fragmentação institucional e doutrinária, pela importação acrítica de ideias e métodos oriundos do centro do poder mundial, pela desvalorização e desconhecimento do passado ou das expressões não euro-ocidentais do Cristianismo, pela falta de ética e pelo coronelismo do poder pessoal de “donos” de igrejas e denominações, com seus caudilhos e sua fogueira de vaidade..
Uma das principais fontes de enfraquecimento da teologia reformada no protestantismo brasileiro se deu na área do louvor, do cântico, porque a Igreja crê no que ela canta, e canta o que ela crê. Devemos apoiar a composição de novos hinos, especialmente com ritmos nacionais, mas, ao abandonarmos os velhos hinários, abandonamos a riqueza e a profundidade da teologia reformada neles contida. A Igreja deixou de cantar a teologia reformada, para ir deixando a própria teologia. O que se canta hoje são genéricas odes à Divindade e a Paz Interior, que pode ser adotada por qualquer monoteísta, e quase nunca tem algo especificamente protestante ou evangélico.
Enfim, o Protestantismo no Brasil é uma força dinâmica, ainda em crescimento quantitativo, mas com sérios problemas originais ou importados, pela superficialidade, pela ausência de um projeto histórico, o que faz com que, apesar do aumento de igrejas e de membros, e de vidas individuais beneficiadas, pouco ou quase nada tem representado em impacto sócio-político-econômico-cultural e na redução dos problemas nacionais, seja a desigualdade social, seja a desonestidade política, seja a violência social.
Tida como uma “igreja adolescente”, ou como “um gigante de pés de barro”, temos o que celebrar; temos potenciais, mas temos muito com o que nos preocupar e, mantido o quadro atual, fica cada vez mais difícil se ser otimista quanto ao futuro. Temos um Protestantismo Brasileiro ou temos “protestantismos brasileiros”? Ou somos apenas um conjunto de indivíduos morenos que professam uma religião estrangeira ou estrangeirizante, incapaz de se enraizar e de amar e santificar a brasilidade, de pensar como nacionais? Por outro lado, uma pergunta que não cessa de nos inquietar: E o que resta do legado da Reforma entre nós?
III – Cenário Futuro
O cenário que se desenhava na primeira metade do século passado, com um número limitado de denominações históricas, de imigração ou de missão, e de denominações pentecostais sérias e éticas, aglutinadas em torno da Confederação Evangélica (1934-1964), em clima de respeito mútuo, e de mais convergências do que divergências, com todos se considerando parte de uma mesma comunidade, portadora de uma mesma herança, partilhando dos mesmos ideais, lamentavelmente se foi, e não parece possível de ser retornado, ao menos em um horizonte previsível.
O cenário que se desenhava por mais de um século, ainda presente na segunda metade do século passado, de um Protestantismo que tinha o Evangelicalismo como corrente hegemônica, em algo que parecia sólido e disseminado, está se esvaindo muito rapidamente nas últimas décadas, minado pelo Fundamentalismo, pelo Liberalismo e pelo Pseudo-Pentecostalismo. Ironicamente, quanto mais “evangélicos” o IBGE atesta em cada Censo, menos evangélicos esses “evangélicos” são…
O cenário que gerou o nacionalismo da Igreja Presbiteriana Independente ou do “Movimento Radical Batista”, os setores e departamentos da Confederação Evangélica, a participação brasileira no Congresso do Panamá (1916), nas CELAs e nos CLADEs, e a inquietação de jovens e de intelectuais na construção de um Evangelicalismo Latino, seja na Aliança Bíblica Universitária (ABU), seja na VINDE, seja na Fraternidade Teológica Latinoamericana (FTL), seja nos Congressos Brasileiros e Nordestinos de Evangelização, hoje pouco mais é do que memoráveis páginas da nossa História, talvez peças de um museu de sonhos, afogados todos na importação de textos, pensadores, preletores e métodos dos centros do poder mundial, reestrangeirizados, com as “fábricas” substituídas por lojas de brinquedos não “Made in China”, mas “Made in USA” ou “Made in UK”
Em uma época em que a globalização é apenas um sofisma para o neocolonialismo, somos, provavelmente, os mais colonizados de todos os brasileiros.
A Bíblia, cada vez mais vendida, em um sem número de traduções e de comentários domesticadores para todos os gostos, é cada vez menos lida e menos conhecida.
A História Geral e Nacional da Igreja é algo sobre o que não se tem interesse ou se tem um escasso conhecimento. E como teremos futuro, se não temos passado? E como iremos atualizar o que desconhecemos: a vida e a obra dos Reformadores, as Confissões de Fé, a Teologia, os Movimentos, enfim, o conteúdo mesmo da Reforma!
Antigamente, ou tínhamos membros comprometidos ou os chamados “desviados”. Hoje há o “crente de IBGE”, o “descendente de crente”, o “crente nominal”, o “membro de frequência ocasional”, “de vez em quando”, “quando me der na telha”, “bissextos”, os “buscadores de bênçãos”, os eternos migrantes denominacionais, no modelo “religião self-service”, onde se põe de tudo no prato, que se projeta em novas manifestações institucionais, como Assembleianos Calvinistas da Teologia da Prosperidade ou Batistas Renovados do Sétimo Dia, com as nomenclaturas as mais exóticas e as mais patológicas…
Se o poeta já dizia que “navegar é preciso”, não teríamos imagem bíblica mais adequada para o protestantismo brasileiro do que a Arca de Noé, na diversidade e algazarra dos bichos de todos os matizes.
Uma nota de tristeza e de lamento se dirige a uma expressiva fatia da nossa liderança, que foi evangélica no passado, mas que hoje, influenciada por outras correntes, abjura do seu passado, ridiculariza suas antigas convicções e confunde as novas gerações, na sua busca necessária de modelos e de heróis. A dubiedade de tantos diante de temas como o aborto e a agenda gay evidenciam que o Evangelicalismo brasileiro é menos sólido do que pensávamos ou desejávamos que fosse.
Para um futuro próximo não vislumbro grandes e radicais mudanças no presente quadro. Continuaremos a crescer quantitativamente, teremos uma mobilidade social com a nossa expressiva presença na chamada “nova classe média”, moralmente mais conservadora, e que os políticos já estão descobrindo, mesmo fragmentados e divergentes; vamos sendo empurrados pela História como atores sociais significativos, e não teremos uma face, mas várias faces, podendo a nascente Aliança Evangélica aglutinar setores éticos em torno da Teologia da Missão Integral da Igreja e de um Evangelicalismo teologicamente conservador e sócio-economicamente progressista. A criação de um bloco mais maduro passa pela consolidação de algo que já vem se dando há algum tempo: a aproximação entre os históricos que admitem a contemporaneidade dos dons espirituais e admiram o dinamismo dos pentecostais, e os pentecostais que valorizam o legado e o pensamento teológico dos históricos.
Na profusão de denominações, subdenominações, ministérios, jurisdições, comunidades, missões, há o desafio da convivência respeitosa, da busca de um mínimo de ética como testemunho e, com maior esforço, o estabelecimento de pontes de diálogos e de ações conjuntas, onde tanto a Aliança Evangélica, a Sociedade Bíblica e as Ordens e Conselhos de Pastores poderiam jogar um importante papel.
A busca de um diploma reconhecido pelo MEC, antes que o preparo de obreiros tende a fortalecer os cursos de Ciência da Religião à custa dos Cursos de Teologia e da própria produção teológica e da prática pastoral.
A reorganização da Igreja Romana em torno de um núcleo de seguidores mais comprometidos, o espaço dos cultos afro-ameríndios nas academias e na mídia, a indiferença religiosa das elites e o secularismo do Estado são desafios muito fortes, e que, muito provavelmente, forçarão um despertar, ao menos por espírito de sobrevivência.
Não precisamos de uma Nova Reforma, nem de novos Reformadores, mas de uma redescoberta no século XXI das mesmas verdades que foram redescobertas no século XVI, e de líderes que tenham a coragem de reafirmá-las dentro do novo contexto. Como já tenho dito, o futuro está no passado que permite construir o presente.
Creio, firmemente, que o Evangelicalismo representa o somatório de toda a herança reformada e é a sua melhor manifestação. Na diversidade de teologias no mercado, nos cabe lutar pela hegemonia do Evangelicalismo, como princípio e como núcleo condutor de uma reformação das igrejas descendentes da Reforma.
Humanamente, o quadro poderia nos levar a cair no pessimismo, já que o otimismo seria irrealista e inconsequente. Mas, a nossa crença na Providência Divina, no Senhorio de Deus sobre a História, e, em particular, sobre a Sua Igreja, nos permite um realismo otimista, passos de fé, que, em muitos momentos, são “saltos no escuro”, mas, assistidos pelo Espírito Santo, nutridos pela Palavra e pelos Sacramentos, nos resta, em obediência, avançar, certos de que Ele faz nova todas as coisas, pois, o nosso Deus é um Castelo Forte, e, em se tratando da Igreja de Jesus Cristo, “Ninguém detém. É obra santa!”.
Niterói (RJ), 28 de maio de 2011,
Anno Domini.

Sem perdão não existe amanhã

Alguém já disse que a família é o lugar dos maiores amores e dos maiores ódios. Compreensível: quem mais tem capacidade de amar, mais tem capacidade de ferir. A mão que afaga é aquela de quem ninguém se protege, e quando agride, causa dores na alma, pois toca o ponto mais profundo de nossas estruturas afetivas. Isso vale não apenas para a família nuclear: pais e filhos, mas também para as relações de amizade e parceria conjugal, por exemplo.

Em mais de vinte anos de experiência pastoral observei que poucos sofrimentos se comparam às dores próprias de relacionamentos afetivos feridos pela maldade e crueldade consciente ou inconsciente. Os males causados pelas pessoas que amamos e acreditamos que também nos amam são quase insuperáveis. O sofrimento resultado das fatalidades são acolhidos como vindos de forças cegas, aleatórias e inevitáveis. Mas a traição do cônjuge, a opressão dos pais, a ingratidão dos filhos, a rixa entre irmãos, a incompreensão do amigo, nos chegam dos lugares menos esperados: justamente no ninho onde deveríamos estar protegidos se esconde a peçonha letal.
Poucas são minhas conclusões, mas enxerguei pelo menos três aspectos dessa infeliz realidade das dores do amar e ser amado. Primeiro, percebo que a consciência da mágoa e do ressentimento nos chega inesperada, de súbito, como que vindo pronta, completa, de algum lugar. Mas quando chega nos permite enxergar uma longa história de conflitos, mal entendidos, agressões veladas, palavras e comentários infelizes, atos e atitudes danosos, que foram minando a alegria da convivência, criando ambientes de estranhamento e tensões, e promovendo distâncias abissais.
Quando nos percebemos longe das pessoas que amamos é que nos damos conta dos passos necessários para que a trilha do ressentimento fosse percorrida: um passo de cada vez, muitos deles pequenos, que na ocasião foram considerados irrelevantes, mas somados explicam as feridas profundas dos corações.
Outro aspecto das dores do amar e ser amado está no paradoxo das razões de cada uma das partes. Acostumados a pensar em termos da lógica cartesiana: 1 + 1 = 2 e B vem depois de A e antes de C, nos esquecemos que a vida não se encaixa nos padrões de causa e efeito do mundo das ciências exatas. Pessoas não são máquinas, emoções e sentimentos não são números, relacionamentos não são engrenagens. É ingenuidade acreditar que as relações afetivas podem ser enquadradas na simplicidade dos conceitos certo e errado, verdade e mentira, preto e branco. A vida é zona cinzenta, pessoas podem estar certas e erradas ao mesmo tempo, cada uma com sua razão, e a verdade de um pode ser a mentira do outro. Os sábios ensinam que “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, e considerando que cada pessoa tem seu ponto, as cores de cada vista serão sempre ou quase sempre diferentes. Isso me leva ao terceiro aspecto.
Justamente porque as feridas dos corações resultam de uma longa história, lida de maneiras diferentes pelas pessoas envolvidas, o exercício de passar a limpo cada passo da jornada me parece inadequado para a reconciliação. Voltar no tempo para identificar os momentos cruciais da caminhada, o que é importante para um e para outro, fazer a análise das razões de cada um, buscar acordo, pedir e outorgar perdão ponto por ponto não me parece ser a melhor estratégia para a reaproximação dos corações e cura das almas.
Estou ciente das propostas terapêuticas, especialmente aquelas que sugerem a necessidade de re–significar a história e seus momentos específicos: voltar nos eventos traumáticos e dar a eles novos sentidos. Creio também na cura pela fala. Admito que a tomada de consciência e a possibilidade de uma nova consciência produzem libertações, ou, no mínimo, alívios, que de outra maneira dificilmente nos seriam possíveis. Mas por outro lado posso testemunhar quantas vezes já assisti esse filme, e o final não foi nada feliz. Minha conclusão é simples (espero que não simplória): o que faz a diferença para a experiência do perdão não é a qualidade do processo de fazer acordos a respeito dos fatos que determinaram o distanciamento, mas a atitude dos corações que buscam a reaproximação. Em outras palavras, uma coisa é olhar para o passado com a cabeça, cada um buscando convencer o outro de sua razão, e bem diferente é olhar para o outro com o coração amoroso, com o desejo verdadeiro do abraço perdido, independentemente de quem tem ou deixa de ter razão. Abraços criam espaço para acordos, mas a tentativa de celebrar acordos nem sempre termina em abraços.
Essa foi a experiência entre José e seus irmãos. Depois de longos anos de afastamento e uma triste história de competições explícitas, preferências de pai e mãe, agressões, traições e abandonos, voltam a se encontrar no Egito: a vítima em posição de poder contra seus agressores. José está diante de um dilema: fazer justiça ou abraçar. Deseja abraçar, mas não consegue deixar o passado para trás. Enquanto fala com seus irmãos sai para chorar, e seu desespero é tal que todos no palácio escutam seu pranto. Mas ao final se rende: primeiro abraça e depois discute o passado. Essa é a ordem certa. Primeiro, porque os abraços revelam a atitude dos corações, mais preocupados em se (re)aproximar do que em fazer valer seus direitos e razões. Depois, porque, no colo do abraço o passado perde força e as possibilidades de alegrias no futuro da convivência restaurada esvaziam a importância das tristezas desse passado funesto.
Quando as pessoas decidem colocar suas mágoas sobre a mesa, devem saber que manuseiam nitroglicerina pura. As palavras explodem com muita facilidade, e podem causar mais destruição do que promover restauração. Não são poucos os que se atrevem a resolver conflitos, e no processo criam outros ainda maiores, aprofundam as feridas que tentavam curar, ou mesmo ferem novamente o que estava cicatrizado. Tudo depende do coração. O encontro é ao redor de pessoas ou de problemas? A intenção é a reconciliação entre as pessoas ou a busca de soluções para os problemas? Por exemplo, quando percebo que sua dívida para comigo afastou você de mim, vou ao seu encontro em busca do pagamento da dívida ou da reaproximação afetiva? Nem sempre as duas coisas são possíveis. Infelizmente, minha experiência mostra que a maioria das pessoas prefere o ressarcimento da dívida em detrimento do abraço, o que fatalmente resulta em morte: as pessoas morrem umas para as outras e, consequentemente, as relações morrem também. A razão é óbvia: dívidas de amor são impagáveis, e somente o perdão abre os horizontes para o futuro da comunhão. Ficar analisando o caderno onde as dívidas estão anotadas e discutindo o que é justo e injusto, quem prejudicou quem e quando, pode resultar em alguma reparação de justiça, mas isso é inútil – dívidas de amor são impagáveis.
Mas o perdão tem o dia seguinte. Os que recebem perdão e abraços cuidam para não mais ferir o outro. Ainda que desobrigados pelo perdão, farão todo o possível para reparar os danos do caminho. Mas já não buscam justiça. Buscam comunhão. Já não o fazem porque se sentem culpados e querem se justificar para si mesmos ou para quem quer que seja, mas porque se percebem amados e não têm outra alternativa senão retribuir amando. As experiências de perdão que não resultam na busca do que é justo desmerecem o perdão e esvaziam sua grandeza e seu poder de curar. Perdoar é diferente de relevar. Perdoar é afirmar o amor sobre a justiça, sem jamais sacrificar o que é justo. O perdão coloca as coisas no lugar. E nos capacita a conviver com algumas coisas que jamais voltarão ao lugar de onde não deveriam ter saído. Sem perdão não existe amanhã

fonte:http://edrenekivitz.com/blog/2011/06/sem-perdao-nao-existe-amanha-2/

Ódio on-line

 

 
Por Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Na esteira de seu novo disco, à venda num site para o qual as pessoas podem escrever o que quiserem, Chico Buarque fez uma grave constatação. “Eu achava que era amado, porque as pessoas iam ao show, me aplaudiam, e, na rua, me cumprimentavam”, ele disse. “Descobri, na internet, que sou odiado. As pessoas falam o que lhes vem à cabeça. Agora entendi as regras do jogo.”
Sim, são as novas regras. Chico Buarque, possivelmente, nunca foi a unanimidade que se pensava -ao lado das multidões que lhe são gratas pela beleza que espalha em letra e música há quase 50 anos, sempre devem ter existido os inconformados com seu sucesso, com seu talento, com suas rimas, talvez até com seus olhos claros.
A diferença é que os que não gostavam dele não se dariam ao trabalho de ir a seus shows para hostilizá-lo e, se passassem por ele na rua, não se disporiam a desfeiteá-lo. A vida real tem seus códigos de convívio -nela, para melhor andamento dos trabalhos, somos mais tolerantes e evitamos dizer o que pensamos uns dos outros. Mas a internet está fora desses códigos.
Nesta, ao sermos convidados a “interagir” e a “postar” nossos comentários, podemos despejar tudo que pensamos contra ou a favor de quem quer que seja. Quase sempre, contra. Uma sequência de comentários -que, em poucas horas, são milhares- a respeito de qualquer coisa nas páginas on-line é uma saraivada de ódios, despeitos, rancores, recalques e ressentimentos. E, não raro, num português de quinta. Pode-se ofender, ameaçar e agredir sem receio, como numa covarde carta anônima coletiva.
Alguns dirão que isso tem um lado bom -com a internet, acabou a hipocrisia e, agora, as pessoas podem se revelar como realmente são. Que ótimo. Resta perguntar quando elas passarão à prática -do ódio on-line contra X ou Y para sua manifestação concreta na rua.

[Folha de S.Paulo, sexta-feira, 1 de julho de 2011]

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Palavras Douradas


Palavras Douradas

Como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo. Provérbios 25:11.  

Certa vez, eu estava lendo o livro de Provérbios e me deparei refletindo sobre este interessante provérbio que compara a palavra falada na ocasião oportuna às maçãs de ouro servidas em bandejas de prata.  Inevitavelmente comecei a pensar no valor das palavras que falo e a quem falo, como falo e em que momento as falo, e me perguntei: “Quantas delas são tão preciosas assim?”
Realmente, trata-se de um tesouro irrecusável os bons conselhos na hora da dúvida, ou o suave consolo em face da aflição, como também é valioso o encorajamento diante do medo.  Existem palavras que são bálsamo para dor e outras que são colírio para os olhos, que as vezes não enxergam muito bem a verdade sem a ajuda de uma boa palavra.
Recordei-me de um testemunho que ouvi há muito tempo atrás, não sei ao certo quando foi, mas certamente me fez pensar no valor do produto dos lábios que se abrem em sabedoria.
Certo homem agricultor chamado José e sua esposa, a linda Maria das Flores, moravam numa pequena fazendinha que José herdara de seus pais. Eles eram muito felizes, pois na terra onde viviam e trabalhavam juntos, conseguiam tudo que precisavam para viver.
Houve uma terrível seca naquela região, e o jovem casal perdeu muitos animais e colheitas inteiras. As coisas ficaram difíceis, e José tomou uma importante decisão, partir em busca de trabalho para conseguir juntar um bom dinheiro para mudar a sorte de sua família.
Montando seu estimado cavalo viajou muitos dias, até chegar a terras distantes não atingidas pela avassaladora seca. Encontrando uma enorme e linda fazenda resolveu pedir emprego, pois lidar com terra e com animais era oque mais gostava e sabia fazer. Foi recebido pelos empregados da fazenda que o conduziram até o proprietário, o Sr. Teófilo, que percebendo o desgaste físico e o estado abatido de José por causa da grande viajem lhe oferece uma refeição e um bom banho para o até então desconhecido peregrino. Ambos conversam muito, José conta sua história à Teófilo que se compadece dele dando-lhe trabalho com os outros peões da fazenda.
José trabalhava muito, se destacava entre os outros empregados da fazenda e começava a adquirir o respeito dos colegas. Quando chegou a hora dos empregados receberem seu salário, José não quis receber dizendo ao seu patrão:
“Aqui eu tenho comida e lugar para dormir, não tenho nenhuma outra necessidade, percebo que o senhor é um homem sábio e honrado, então gostaria que me ajudasse guardando os meus salários e quando chegar a hora de partir levarei  o dinheiro para minha família”.
De fato o Sr. Teófilo era um homem muito sábio, justo e honrado, compreendendo a vontade de José ele resolve atender o seu pedido e guarda em um cofre o salário, e assim o faz todos os meses.
Passam-se os anos, e de peão José passa para capataz e depois á administrador da fazenda, sempre trabalhando com muita dedicação e amor. Depois de vinte longos anos José procura o Sr. Teófilo, que já não é somente seu patrão, mas sim seu mentor e melhor amigo para lhe pedir as contas dizendo:
“Meu velho amigo, chegou a hora de voltar para minha terra e para minha Maria, em todos estes anos te servi, mas agora preciso que me dê meu salário e me deixe partir”.
Seu patrão faz as contas, reúne o dinheiro e fala a José:
“Tenho uma proposta a você, posso lhe dar todo o seu dinheiro e você volta e o usa como quer, ou... ao invés de lhe dar todo o dinheiro posso lhe dar uma parte somente e o restante pago com três valiosos conselhos. Não precisa responder agora, durma esta noite pense um pouco e amanhã faça sua opção”.
José perturbou-se muito com aquela proposta, mas não desconfiou de seu patrão, afinal de contas eram amigos também, além do mais, se em todos estes anos que conviveram juntos ele aprendeu algo sobre aquele homem, seria o fato de se tratar de uma pessoa honrada, justa e muito sábia. No dia seguinte  José respondeu ao Sr. Teófilo:
“Fiz minha escolha, vou querer os conselhos, pois sei que a sabedoria que o senhor possui é muito valiosa”.
O Sr. Teófilo apanha uma bolsa, dois pães grandes e um grande embrulho de presente e diz:
“Este pão é para você comer na viagem, este outro no pacote é especial, coma com sua família quando chegar em casa, o embrulho é um presente meu para você e sua esposa, abra-o com ela com os meus cumprimentos. Dentro desta bolsa está o dinheiro que lhe sobrou e três envelopes contendo os conselhos que compraste, use-os quando estiver confuso, em dúvida ou perdido”.
Os dois se abraçaram e choraram então José despedindo-se de todos partiu montado num jovem e forte cavalo.
Depois de um dia de viagem José encontrou outro cavaleiro que cavalgava na mesma direção, logo conversaram e tornaram-se companheiros de jornada. No dia seguinte chegaram ao ponto em que a estrada desviava para contornar uma densa floresta, José estava pronto para seguir viagem normalmente quando seu companheiro exclamou:
“Para onde vai José? Seguir pela estrada é um caminho muito longo... Vamos atravessar a floresta e ganharemos pelo menos um dia de viagem!”
José olha, acha o atalho um tanto perigoso e suspeito, fica em dúvida, entretanto se lembra  das sábias palavras de seu patrão. Sacando um envelope ele lê o primeiro conselho:

Há caminho que ao homem parece bom, mas o fim dele são os caminhos da morte.1

Após refletir sobre as palavras decide não seguir o companheiro e despedem-se.
Passaram-se dois dias e José chega a uma estalagem na beira da estrada. O estalajadeiro quando vê José pergunta:
“Você não encontrou um homem cavalgando nesta direção em seu caminho? Pois meu irmão deveria chegar hoje de viagem, é que somos sócios.”
Os dois conversam e descobrem que o companheiro de viagem de José é o referido homem. O estalajadeiro chora esperando o pior quando descobre que seu irmão pegou o perigoso atalho da floresta e deveria ter chegado um dia antes. Muito triste José segue para seu quarto, e após um banho quente se põe a dormir.
Quando já era noite alta José desperta com gritos apavorados de Socorro que partem do lado de fora da estalagem. Assustado e confuso com aquela situação, José olha pela janela, mas não vê nada além da enorme lua. Vestindo-se para tentar ver o que estava acontecendo lá fora, mais uma vez lembra-se das sábias palavras de seu patrão, tomando mais um envelope o lê na esperança de que nele contenha alguma luz para esta confusão, nele estava escrito:

O alto caminho dos justos é desviar-se do mal; o que guarda o seu caminho preserva a sua alma.2

José volta para sua cama e decide não sair, ao amanhecer pergunta ao estalajadeiro: “O que estava acontecendo durante a noite e porque estavam gritando?”.
O homem lhe pede desculpas e diz: “Perdoe-me estava tão arrasado com o desaparecimento do meu irmão que me esqueci de te avisar. Na lua cheia um homem louco e violento grita por socorro nestas proximidades esperando que algum viajante desavisado saia para ver o que está acontecendo, e então ele o ataca e o mata”.
Mais uma vez nosso peregrino teve a vida poupada por um sábio conselho, mas a viagem ainda não terminou, resta pelo menos um dia de caminho galopando bem rápido, e José está com muita saudade de sua amada esposa.
Até que enfim, ele está chegando e logo vê da chaminé uma fumaça, é a hora do jantar. Ele se aproxima da janela e vê ao fogão sua linda Maria das Flores, tão bonita quanto no dia em que ele partiu, mas algo acontece... Um rapaz mais jovem aparece abraça Maria, lhe dá um beijo no rosto. “Não pode ser!!!” Pensa José já se afastando da janela com lágrimas molhando seus olhos.
Já cego de ciúmes, louco de ira e perdido de coração José apanha o machado de cortar lenha de sobre o tronco e parte para vingar-se. Então de repente um estalo diretamente da sua mente lhe diz: “Resta-lhe ainda um conselho!”. Ele trêmulo saca o envelope da bolsa abre e lê:

Um tolo expande toda a sua ira; mas o sábio a encobre e reprime. O ódio excita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões.3

Meditando nas palavras que leu no último conselho, respira fundo várias vezes solta o machado e decide falar com sua esposa. Bate na porta, Maria se aproxima e quando abre a porta toma um choque, surpresa e muito emocionada logo se põe a chorar, abraçando José beija-o, mas os lábios e braços dele não se movem, são como pedra, ela assustada afasta-se não entendendo o desprezo de seu marido olha em seus olhos como quem pergunta por quê?
 José começa a replicar: “Durante estes vinte anos eu tão somente trabalhei, e me mantive fiel, suportei todas as tentações, superei as dificuldades só pela esperança de voltar para você e lhe dar uma vida melhor... Por que você não pôde me esperar? Por que me traiu??
Enquanto ele ainda fala o jovem rapaz se aproxima, Maria o chama e diz: “Paulo José, venha conhecer o seu pai”.
Ele parado na porta não podia acreditar, mas quando vê o rapaz de perto é como olhar um espelho a vinte anos atrás, os mesmos traços, o mesmo cabelo, era de fato seu filho? Maria explica: “Quando você me deixou há vinte anos, eu não sabia, mas estava grávida de nosso filho. Foi por isso que nunca me senti só, porque tudo nele me lembrava você José.”
E todos se abraçam e choram muito, enfim é hora do jantar, e José trouxe um pão especial para comer com sua família, e quando todos estavam a mesa abriram o presente que o Sr. Teófilo mandou com seus cumprimentos, era um lindo livro com uma dedicatória: “Aqui está toda sabedoria que precisei em minha vida, e toda a sabedoria que um homem pode precisar, Bem-aventurado aquele que lê, e os que ouvem e guardam as palavras deste livro”.
Muito felizes partem o pão especial, e para surpresa de José dentro dele está o ouro correspondente ao restante do salário de José.  Diga-me você leitor qual foi o melhor presente de Teófilo?

1Pv 14:12; 2Pv 16:17; 3Pv 29:11; 10:12.