Meus textos

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Recuperação


“Famigerada, terrível, odiosa”. É assim que tratamos uma ladeira de morte de uns oitocentos metros e que ironicamente termina em frente à Faculdade de Biologia da USP. Ela é o batismo de quem quer se considerar um corredor. Aqueles que conseguem domá-la não temem qualquer outro percurso. Encontram-se devidamente preparados para as competições. Ressalva a tempo: nessas competições o único adversário é você mesmo e os quilômetros que separam a faixa da largada do anúncio da chegada. Os corredores amadores não nutrem a mínima pretensão de chegar em primeiro lugar, basta completar a prova.
Recordo-me do dia em que derrotei a famigerada pela primeira vez. Cheguei ao topo com o coração irado e reclamando. O ar, subitamente rarefeito, não chegava aos músculos, minhas pernas se embriagaram. Mas depois, treinando para uma maratona, acabei tirando o aguilhão da odiosa. Não a respeito como antigamente! Já consegui subí-la por sete vezes consecutivas. Corro e encaro meus desafios com o mesmo vigor daqueles tempos que ainda não celebrara meus quarenta anos. Mas, algo vem acontecendo comigo e com o meu corpo, nesta véspera de celebrar os cinquenta. Para me recuperar do esforço de correr, preciso de períodos cada vez mais longos de descanso.
Constato que isso não me acontece só em corridas. Antigamente terminava de pregar um sermão, saía para jantar com amigos, voltava para casa de madrugada e já na segunda-feira cedinho encarava qualquer nova aventura. Agora sinto dificuldade para me levantar da cama. Meu corpo, minha mente, meus sentimentos me amarram aos lençóis e não me deixam funcionar bem até que o processo de recuperação aconteça completamente.
Há outros exemplos até mais constrangedores: do sexo às refeições. A idade me cobra intervalos mais longos para me recondicionar e me declarar apto novamente. A princípio nem notei, agora bem apercebido, entristeci. Porque à medida que envelhecemos, precisamos desses hiatos longos? Há alguma verdade escondida além do óbvio? Não me satisfaço com a resposta de que o maquinário se desgastou ou está ultrapassado.
Já sei! Na velhice precisamos de maiores intervalos para degustar a vida demoradamente. É uma forma da natureza nos obrigar a não pular apressadamente para uma nova experiência, sem antes saboreá-la com calma. Na juventude, acabávamos de viver um romance, experimentar o sexo, saborear uma torta, ver uma pintura, ouvir uma música, declamar um poema, rir de uma piada, ouvir um sermão e já estávamos ávidos para mais. Agora não! Nem queremos que venha logo a próxima experiência. A vida nos obriga a ficar com o seu gosto na boca por mais tempo. Eu chamava esses hiatos antigamente de recuperação, hoje eu chamo de felicidade.
Se já não saio de minhas dores com facilidade, se elas grudam em mim, me obrigam a sofrê-las, tatuá-las em minhas entranhas, o mesmo acontece com as minhas alegrias. Já não me despeço delas com rapidez; sei o quanto custam.
Envelhecer não é tão ruim, como eu imaginava.
Soli Deo Gloriaoli Deo Gloria